Eu nunca tive uma visão tão clara do futuro da moda quanto agora.
Eu fui designer de moda por 10 anos e trabalhei em grandes e pequenas empresas no Brasil e no Canadá. Durante a pandemia, se você me perguntasse qual seria o futuro da moda, eu colocaria todos os meus bitcoins na moda digital. Eu comecei a estudar modelagem 3D e cheguei até a gravar um podcast tentando aprender e explicar o que era um non-fungible token (NFT). É interessante pensar em como minha opinião sobre o mercado evoluiu desde então.
Na minha cabeça de designer era muito simples. Dentre os benefícios da moda digital, ficou claro para mim que essas ferramentas eram o que faltavam para designers criarem de forma mais precisa e ágil, oferecendo a possibilidade de diminuir a quantidade de amostras produzidas no desenvolvimento de coleções. SIMPLES! O mundo da moda se torna mais sustentável, e foram felizes para sempre… ou não?
Poucos meses depois de eu aprender sobre moda digital, decidi abandonar o design e começar a trabalhar com pesquisa e desenvolvimento de matéria-prima (🇬🇧Materials R&D) em uma grande marca de luxo canadense. Essa experiência me ensinou muito sobre outra camada problemática da moda: pilhas e pilhas de amostras de tecidos, aviamentos e amostras de cores descartados diariamente na indústria. Diferente do desenvolvimento de produto, a moda digital ainda é pouco explorada no desenvolvimento de matéria-prima.
E eu acho que, se você não trabalhar em um departamento de matéria-prima, você nunca vai entender a proporção desse lixo têxtil. Vou te dar um exemplo: quando eu pedia um desenvolvimento de uma fita de jacquard com o logo da empresa, o fornecedor não podia simplesmente me enviar uma pequena amostra de 1 metro, pois os maquinários dele produzem dezenas de metros sempre que ele programa a máquina com a nova arte. Até aí tudo bem, mas digamos que o designer não curtiu muito o tamanho da arte ou a qualidade da fita. Lá vamos nós para uma segunda ou terceira rodada de amostras, e mais dezenas e dezenas de matéria-prima são usadas. Agora vem a parte da coloração, pois hoje em dia bonito é aviamento combinando com o tecido, certo? (Curiosidade de nerd da moda, Elsa Schiaparelli foi a primeira designer a criar zíperes em cores que combinavam com o material usado em suas roupas.)
A marca para a qual eu trabalhava era grande, então eles tinham o poder de desenvolver cores exclusivas para todos os aviamentos sem custo extra. E lá se vão mais centenas e centenas de metros de fitas coloridas para, se tudo der certo, a colorista aprovar a amostra de primeira (o que é muito raro).
Como eu já tinha começado essa jornada na digitalização antes de trabalhar com matéria-prima, eu trazia a discussão à tona para minhas superiores, e fico muito feliz de sempre ter sido apoiada. Eu pude usar parte do meu tempo no trabalho para pesquisar, estudar e apresentar inovações para a digitalização e inovação no desenvolvimento de aviamentos. Inclusive, recebi uma bolsa de estudos da empresa para estudar “Impressão 3D para Designers” na FIT, em Nova York. Contei tudo nessa newsletter aqui.
Eu consegui implementar processos de aprovação tanto digitais quanto físicos, usando impressões 3D de aviamentos, e reduzi a quantidade de amostras de aviamentos rígidos (🇬🇧hard trims: e.g., cordlocks and buttons). Mas ainda havia um longo caminho a ser percorrido na pesquisa para os aviamentos flexíveis (🇬🇧soft trims: e.g., tapes and elastic).
Eu continuo acreditando que a moda digital desempenha um papel crucial para a nossa indústria, especialmente no que diz respeito à sustentabilidade. No entanto, hoje enxergo o futuro da moda de forma mais holística e abrangente.
Pula para 2024, quando eu comecei o mestrado de Fashion Marketing & Management em com foco em sustentabilidade na Universidade de Borås na Suécia.
Recentemente, em uma palestra sobre sustentabilidade na moda aqui na universidade, perguntei ao CEO de uma grande fabricante de tecidos aqui da Suécia, quais eram os profissionais que ele mais precisava. Durante a sua palestra, esse CEO usou muito a palavra "digitalização", então, quando eu o perguntei, dei exemplos: “você precisa de mais designers de moda digital?”.
Ele respondeu: “não, não, não!”, e explicou que, na realidade, a digitalização à qual ele se referia era relacionada ao rastreamento (🇬🇧traceability) dos produtos. Ele continuou dizendo algo assim: “primeiro de tudo, eu preciso de profissionais apaixonados pela causa da sustentabilidade e que essa causa os motive a serem persistentes e pacientes, porque esses projetos podem demorar muito tempo para se tornarem realidade. E, por fim, preciso de pessoas interessadas em gerenciar equipes!”.
Quando ele falou isso, caiu a ficha de que eu já tinha passado por algo parecido. A última empresa onde trabalhei fez um projeto gigantesco de rastreamento para atualizar os dados do PLM (🇬🇧Product Lifecycle Management). Eu vi minha chefe colocar todas as energias dela nesse projeto e em motivar a equipe a colaborar. Além da nossa equipe fixa, a empresa precisou contratar mais analistas de dados para acelerar o processo.
E por que rastreabilidade é um tópico tão importante para a moda, especialmente na Europa? Leia mais sobre o Passaporte de Produto Digital (🇬🇧Digital Product Passport - DPP) e o Regulamento de Ecodesign para Produtos Sustentáveis. Meus alunos do Fashion Vocab Talks já estão por dentro, pois tivemos uma aula sobre isso.
Se você quer aprender como o DPP vai ser aplicado na vida real, acesse este link de um produto lançado pela marca sueca Filippa K, em colaboração com a AX Foundation e a GS1 Sweden, que rastreou a fibra de lã desde as fazendas até a manufatura.
No mesmo evento da universidade, a diretora de um grande grupo de varejo sueco abriu sua palestra dizendo: “o profissional do futuro precisa gostar, ou pelo menos não desgostar, de analisar dados.”
Combinando tudo isso com minhas experiências como podcaster ao ouvir mais de 100 profissionais de moda atuando em diversos países e minha experiência como professora de moda, eu diria que as profissões do futuro são menos empolgantes e criativas do que eu esperava.
Hoje, eu também aposto em profissões como Gerente de Sustentabilidade (🇬🇧Sustainability Manager), Analista de Rastreabilidade (🇬🇧Traceability Analyst) e, por último, mas não menos importante, Analista de Dados (🇬🇧Data Analyst).
Se você trabalha com moda no Brasil, essas profissões do futuro podem parecer mais distantes. Mas, se você quer trabalhar com moda na Europa ou na América do Norte, é essencial entender a importância dessas profissões, porque essas regulamentações em prol de uma indústria da moda mais sustentável e circular já começaram a entrar em prática. Esse é o início do fim das marcas de fast fashion, e o jeito de fazer moda como estamos habituados vai mudar.
Você está preparada?
Ouça o episódio 131 do Moda na Mochila para aprender mais: